A Carteira
por Machado de Assis
...DE REPENTE, Honório olhou para
o chão e viu uma carteira. Abaixar‑se, apanhá‑la e guardá‑la foi obra de alguns instantes. Ninguém o viu, salvo
um homem que estava à porta de uma loja, e que, sem o conhecer, lhe disse
rindo:
‑‑ Olhe, se não dá por
ela; perdia‑a
de uma vez.
‑‑ É verdade, concordou
Honório envergonhado.
Para avaliar a oportunidade
desta carteira, é preciso saber que Honório tem de pagar amanhã uma dívida,
quatrocentos e tantos mil‑réis,
e a carteira trazia o bojo recheado. A dívida não parece grande para um homem
da posição de Honório, que advoga; mas todas as quantias são grandes ou
pequenas, segundo as circunstâncias,
e as dele não podiam ser piores. Gastos de família excessivos, a
princípio por servir a parentes, e depois por agradar à mulher, que vivia
aborrecida da solidão; baile daqui, jantar dali, chapéus, leques, tanta cousa
mais, que não havia remédio senão ir descontando o futuro. Endividou‑se. Começou pelas contas de lojas e armazéns; passou
aos empréstimos, duzentos a um, trezentos a outro, quinhentos a outro, e tudo a
crescer, e os bailes a darem‑se, e os jantares a comerem‑se, um turbilhão
perpétuo, uma voragem.
‑‑ Tu agora vais bem,
não? dizia‑lhe
ultimamente o Gustavo C..., advogado e
familiar da casa.
‑‑ Agora vou, mentiu o
Honório.
A verdade é que ia mal.
Poucas causas, de pequena monta, e constituintes remissos; por desgraça perdera
ultimamente um processo, em que fundara grandes esperanças. Não só recebeu
pouco, mas até parece que ele lhe tirou alguma cousa à reputação jurídica; em
todo caso, andavam mofinas nos jornais.
D. Amélia não sabia nada; ele
não contava nada à mulher, bons ou maus negócios. Não contava nada a ninguém.
Fingia‑se
tão alegre como se nadasse em um mar de prosperidades. Quando o Gustavo, que ia
todas as noites à casa dele, dizia uma ou duas pilhérias, ele respondia com
três e quatro; e depois ia ouvir os trechos de música
alemã, que D. Amélia tocava muito bem ao piano, e que o Gustavo
escutava com indizível prazer, ou jogavam cartas, ou simplesmente falavam de política.
Um dia, a mulher foi achá‑lo dando muitos beijos à
filha, criança de quatro anos, e viu‑lhe os olhos molhados; ficou espantada, e perguntou‑lhe o que era.
‑‑ Nada, nada.
Compreende‑se que era o medo do
futuro e o horror da miséria. Mas as
esperanças voltavam com facilidade. A idéia de que os dias melhores tinham de vir dava‑lhe conforto para a
luta. Estava com, trinta e quatro anos; era o princípio da carreira: todos os
princípios são difíceis. E toca a trabalhar, a esperar, a gastar, pedir fiado
ou:
emprestado, para pagar mal, e a más horas. A dívida urgente de hoje são uns malditos
quatrocentos e tantos
mil‑réis
de carros. Nunca demorou tanto a conta, nem ela cresceu tanto, como agora; e, a
rigor, o credor não lhe punha a faca aos peitos; mas disse‑lhe hoje uma palavra
azeda, com um gesto mau, e Honório quer pagar‑lhe hoje mesmo. Eram cinco horas da tarde.
Tinha‑se
lembrado de ir a um agiota, mas voltou sem ousar pedir nada. Ao enfiar pela
Rua. da Assembléia é que viu a carteira no chão, apanhou‑a, meteu no bolso, e foi
andando. Durante os primeiros
minutos, Honório não pensou nada; foi andando, andando, andando, até o Largo da
Carioca. No Largo parou alguns instantes, ‑‑ enfiou depois pela Rua da Carioca, mas voltou logo, e entrou na Rua Uruguaiana. Sem saber
como, achou‑se
daí a pouco no Largo de S. Francisco de Paula; e ainda, sem saber como, entrou em um Café. Pediu alguma cousa e
encostou‑se
à parede, olhando para fora. Tinha medo de abrir a carteira; podia não achar
nada, apenas papéis e sem valor para ele. Ao mesmo tempo, e esta era a causa
principal das reflexões, a consciência perguntava‑lhe se podia utilizar‑se do dinheiro que achasse. Não lhe perguntava com o
ar de quem não sabe, mas antes com uma expressão irônica e de censura. Podia lançar mão do dinheiro, e ir
pagar com ele a dívida?
Eis o ponto. A consciência acabou por lhe dizer que não podia, que
devia levar a carteira à polícia, ou anunciá‑la; mas tão depressa acabava de lhe dizer isto, vinham
os apuros da ocasião, e puxavam por ele, e convidavam‑no a ir pagar a
cocheira. Chegavam mesmo a dizer‑lhe que, se fosse ele que a tivesse perdido, ninguém
iria entregar‑lha;
insinuação que lhe deu ânimo.
Tudo isso antes de abrir a
carteira. Tirou‑a
do bolso, finalmente, mas com medo, quase às escondidas; abriu‑a, e ficou trêmulo.
Tinha dinheiro, muito dinheiro; não
contou, mas viu duas notas de duzentos mil‑réis, algumas de cinqüenta e vinte; calculou uns setecentos
mil réis ou mais; quando menos, seiscentos. Era a dívida paga; eram
menos algumas despesas urgentes. Honório teve tentações de fechar os
olhos, correr à cocheira, pagar, e, depois de paga a dívida, adeus; reconciliar‑se‑ia consigo. Fechou a carteira,
e com medo de a perder, tornou a guardá‑la.
Mas daí a pouco tirou‑a outra vez, e abriu‑a, com vontade de contar
o dinheiro. Contar para quê? era dele? Afinal venceu‑se e contou: eram
setecentos e trinta mil‑réis.
Honório teve um calafrio. Ninguém viu, ninguém soube; podia ser um lance da
fortuna, a sua boa sorte, um anjo...
Honório teve pena de não crer nos anjos...
Mas por que não havia de crer neles? E voltava ao dinheiro, olhava, passava‑o pelas mãos; depois,
resolvia o contrário, não usar do achado, restituí‑lo. Restituí‑lo a quem? Tratou de ver
se havia na carteira algum sinal.
"Se houver um nome, uma
indicação qualquer, não posso utilizar-me do dinheiro," pensou ele.
Esquadrinhou os bolsos da
carteira. Achou cartas, que não abriu, bilhetinhos dobrados, que não leu, e por
fim um cartão de visita; leu o nome; era do Gustavo. Mas então, a carteira?...
Examinou‑a
por fora, e pareceu‑lhe
efetivamente do amigo. Voltou ao interior; achou mais dous cartões, mais três,
mais cinco. Não havia duvidar; era dele.
A descoberta entristeceu‑o. Não podia ficar com o
dinheiro, sem praticar um ato ilícito,
e, naquele caso, doloroso ao seu coração porque era em dano de um amigo. Todo o
castelo levantado esboroou‑se como se fosse de cartas. Bebeu a última gota de
café, sem reparar que estava frio. Saiu,
e só então reparou que era quase noite. Caminhou para casa. Parece que a
necessidade ainda lhe deu uns dous
empurrões, mas ele resistiu.
"Paciência, disse ele
consigo; verei amanhã o que posso fazer."
Chegando a casa, já ali achou o Gustavo, um pouco preocupado e a própria
D. Amélia o parecia também. Entrou rindo, e perguntou ao amigo se lhe faltava alguma cousa.
‑‑ Nada.
‑‑ Nada?
‑‑ Por quê?
‑‑ Mete a mão no bolso;
não te falta nada?
‑‑ Falta‑me a carteira, disse o
Gustavo sem meter a mão no bolso.
Sabes se alguém a achou?
‑‑ Achei‑a eu, disse Honório
entregando‑lha.
Gustavo pegou dela precipitadamente, e olhou desconfiado para o amigo.
Esse olhar foi para Honório como um golpe de estilete; depois de tanta luta com
a necessidade, era um triste prêmio. Sorriu amargamente; e, como o outro lhe
perguntasse onde a achara, deu‑lhe as explicações precisas.
‑‑ Mas conheceste‑a?
‑‑ Não; achei os teus
bilhetes de visita.
Honório deu duas voltas, e
foi mudar de toilette para o jantar. Então Gustavo sacou novamente a carteira,
abriu‑a,
foi a um dos bolsos, tirou um dos
bilhetinhos, que o outro não quis abrir nem ler, e estendeu‑o a D. Amélia, que,
ansiosa e trêmula, rasgou‑o
em trinta mil pedaços: era um bilhetinho
de amor.
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