sexta-feira, 24 de julho de 2015

A Carteira (Machado de Assis)

A Carteira
por Machado de Assis

                                                                                                                              
...DE REPENTE, Honório olhou para o chão e viu uma carteira. Abaixarse, apanhála e guardála foi obra de alguns instantes. Ninguém o viu, salvo um homem que estava à porta de uma loja, e que, sem o conhecer, lhe disse rindo:                                         
    ‑‑ Olhe, se não dá por ela; perdiaa de uma vez.                       
    ‑‑ É verdade, concordou Honório envergonhado.                          
    Para avaliar a oportunidade desta carteira, é preciso saber que Honório tem de pagar amanhã uma dívida, quatrocentos e tantos milréis, e a carteira trazia o bojo recheado. A dívida não parece grande para um homem da posição de Honório, que advoga; mas todas as quantias são grandes ou pequenas, segundo as circunstâncias,    
e as dele não podiam ser piores. Gastos de família excessivos, a princípio por servir a parentes, e depois por agradar à mulher, que vivia aborrecida da solidão; baile daqui, jantar dali, chapéus, leques, tanta cousa mais, que não havia remédio senão ir descontando o futuro.  Endividouse. Começou pelas contas de lojas e armazéns; passou aos empréstimos, duzentos a um, trezentos a outro, quinhentos a outro, e tudo a crescer, e os bailes a daremse, e os jantares a comeremse, um turbilhão perpétuo, uma voragem.                                          
    ‑‑ Tu agora vais bem, não? dizialhe ultimamente o Gustavo  C..., advogado e familiar da casa.                                       
    ‑‑ Agora vou, mentiu o Honório.                                        
    A verdade é que ia mal. Poucas causas, de pequena monta, e constituintes remissos; por desgraça perdera ultimamente um processo, em que fundara grandes esperanças. Não só recebeu pouco, mas até parece que ele lhe tirou alguma cousa à reputação jurídica; em todo caso, andavam mofinas nos jornais.                                       
    D. Amélia não sabia nada; ele não contava nada à mulher, bons ou maus negócios. Não contava nada a ninguém. Fingiase tão alegre como se nadasse em um mar de prosperidades. Quando o Gustavo, que ia todas as noites à casa dele, dizia uma ou duas pilhérias, ele respondia com três e quatro; e depois ia ouvir os trechos de música      
alemã, que D. Amélia tocava muito bem ao piano, e que o Gustavo escutava com indizível prazer, ou jogavam cartas, ou simplesmente  falavam de política.                                                     
    Um dia, a mulher foi achálo dando muitos beijos à filha, criança de quatro anos, e viulhe os olhos molhados; ficou espantada, e perguntoulhe o que era.                                                    
    ‑‑ Nada, nada.                                                      
    Compreendese que era o medo do futuro e o horror da miséria.  Mas as esperanças voltavam com facilidade. A idéia de que os dias  melhores tinham de vir davalhe conforto para a luta. Estava com, trinta e quatro anos; era o princípio da carreira: todos os princípios são difíceis. E toca a trabalhar, a esperar, a gastar, pedir fiado ou:
emprestado, para pagar mal, e a más horas.  A dívida urgente de hoje são uns malditos quatrocentos e tantos    
milréis de carros. Nunca demorou tanto a conta, nem ela cresceu tanto, como agora; e, a rigor, o credor não lhe punha a faca aos peitos; mas disselhe hoje uma palavra azeda, com um gesto mau, e Honório quer pagarlhe hoje mesmo. Eram cinco horas da tarde. 

Tinhase lembrado de ir a um agiota, mas voltou sem ousar pedir nada. Ao enfiar pela Rua. da Assembléia é que viu a carteira no chão, apanhoua, meteu no bolso, e foi andando.     Durante os primeiros minutos, Honório não pensou nada; foi andando, andando, andando, até o Largo da Carioca. No Largo parou alguns instantes, ‑‑ enfiou depois pela Rua da Carioca, mas voltou  logo, e entrou na Rua Uruguaiana. Sem saber como, achouse daí a pouco no Largo de S. Francisco de Paula; e ainda, sem saber como,  entrou em um Café. Pediu alguma cousa e encostouse à parede, olhando para fora. Tinha medo de abrir a carteira; podia não achar nada, apenas papéis e sem valor para ele. Ao mesmo tempo, e esta era a causa principal das reflexões, a consciência perguntavalhe se podia utilizarse do dinheiro que achasse. Não lhe perguntava com o ar de quem não sabe, mas antes com uma expressão irônica e de  censura. Podia lançar mão do dinheiro, e ir pagar com ele a dívida?    
Eis o ponto. A consciência acabou por lhe dizer que não podia, que devia levar a carteira à polícia, ou anunciála; mas tão depressa acabava de lhe dizer isto, vinham os apuros da ocasião, e puxavam por ele, e convidavamno a ir pagar a cocheira. Chegavam mesmo a dizerlhe que, se fosse ele que a tivesse perdido, ninguém iria entregarlha; insinuação que lhe deu ânimo.                                 
    Tudo isso antes de abrir a carteira. Tiroua do bolso, finalmente, mas com medo, quase às escondidas; abriua, e ficou trêmulo. Tinha  dinheiro, muito dinheiro; não contou, mas viu duas notas de duzentos milréis, algumas de cinqüenta e vinte; calculou uns setecentos mil réis ou mais; quando menos, seiscentos. Era a dívida paga; eram      
menos algumas despesas urgentes. Honório teve tentações de fechar os olhos, correr à cocheira, pagar, e, depois de paga a dívida, adeus; reconciliarseia consigo. Fechou a carteira, e com medo de a perder, tornou a guardála.                                                    
    Mas daí a pouco tiroua outra vez, e abriua, com vontade de contar o dinheiro. Contar para quê? era dele? Afinal venceuse e contou: eram setecentos e trinta milréis. Honório teve um calafrio. Ninguém viu, ninguém soube; podia ser um lance da fortuna, a sua  boa sorte, um anjo... Honório teve pena de não crer nos anjos...       
Mas por que não havia de crer neles? E voltava ao dinheiro, olhava, passavao pelas mãos; depois, resolvia o contrário, não usar do achado, restituílo. Restituílo a quem? Tratou de ver se havia na carteira algum sinal.                                                          
    "Se houver um nome, uma indicação qualquer, não posso utilizar-me do dinheiro," pensou ele.
                                          
    Esquadrinhou os bolsos da carteira. Achou cartas, que não abriu, bilhetinhos dobrados, que não leu, e por fim um cartão de visita; leu o nome; era do Gustavo. Mas então, a carteira?... Examinoua por fora, e pareceulhe efetivamente do amigo. Voltou ao interior; achou mais dous cartões, mais três, mais cinco. Não havia duvidar; era dele.
    A descoberta entristeceuo. Não podia ficar com o dinheiro, sem  praticar um ato ilícito, e, naquele caso, doloroso ao seu coração porque era em dano de um amigo. Todo o castelo levantado esboroouse como se fosse de cartas. Bebeu a última gota de café, sem reparar  que estava frio. Saiu, e só então reparou que era quase noite. Caminhou para casa. Parece que a necessidade ainda lhe deu uns dous  empurrões, mas ele resistiu.                                          
    "Paciência, disse ele consigo; verei amanhã o que posso fazer."   Chegando a casa, já ali achou o Gustavo, um pouco preocupado e a própria D. Amélia o parecia também. Entrou rindo, e perguntou   ao amigo se lhe faltava alguma cousa.                                 
    ‑‑ Nada.                                                              
    ‑‑ Nada?                                                              
    ‑‑ Por quê?                                                           
    ‑‑ Mete a mão no bolso; não te falta nada?                            
    ‑‑ Faltame a carteira, disse o Gustavo sem meter a mão no bolso.     
Sabes se alguém a achou?                                              
    ‑‑ Acheia eu, disse Honório entregandolha.                           
Gustavo pegou dela precipitadamente, e olhou desconfiado para o amigo. Esse olhar foi para Honório como um golpe de estilete; depois de tanta luta com a necessidade, era um triste prêmio. Sorriu amargamente; e, como o outro lhe perguntasse onde a achara, deulhe as explicações precisas.                                                 
    ‑‑ Mas conhecestea?                                                  
    ‑‑ Não; achei os teus bilhetes de visita.                             

    Honório deu duas voltas, e foi mudar de toilette para o jantar. Então Gustavo sacou novamente a carteira, abriua, foi a um dos  bolsos, tirou um dos bilhetinhos, que o outro não quis abrir nem ler, e estendeuo a D. Amélia, que, ansiosa e trêmula, rasgouo em  trinta mil pedaços: era um bilhetinho de amor.                         

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