Metamorfose (excertos)
KAFKA, Franz. A metamorfose. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. Tradução de
Modesto Carone.
Capítulo
I
Quando
certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranqüilos, encontrou-se em sua
cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado sobre suas costas
duras como couraça e, ao levantar um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado,
marrom, dividido por nervuras arqueadas, no topo de qual a coberta, prestes a
deslizar de vez, ainda mal se sustinha. Suas numerosas pernas, lastimavelmente
finas em comparação com o volume do resto do corpo, tremulavam desamparadas
diante dos seus olhos.
-
O que aconteceu comigo? - pensou.
Não
era um sonho. Seu quarto, um autêntico quarto humano, só que um pouco pequeno
demais, permanecia calmo entre as
quatro paredes bem conhecidas. (...)
Mas
quando enfim estava com a cabeça diante da abertura da porta, feliz, verificou
que seu corpo era demasiado largo para passar sem mais por ela. Ao pai,
naturalmente, na sua condição atual, não ocorreu nem mesmo remotamente abrir a
outra folha da porta, para oferecer a Gregor passagem suficiente. Sua idéia
fixa era simplesmente que Gregor voltasse o mais rápido possível para o quarto.
Jamais teria permitido os preparativos minuciosos de que Gregor necessitava
para levantar-se e, talvez desse modo, passar pela porta. Ao invés disso,
impelia agora Gregor com um ruído excepcional, como se não existisse nenhum
obstáculo; a voz atrás dele já não soava como a de um pai apenas; realmente já
não era uma brincadeira e Gregor forçou - acontecesse o que quisesse - a entrada pela porta. Um lado do
seu corpo se ergueu, permaneceu torto na abertura da porta, um dos seus flancos
se esfolou inteiro, na porta branca ficaram manchas feias, ele logo se entalou
e não poderia mais mover-se sozinho - as perninhas de um lado pendiam trêmulas
no ar, as do outro comprimiam-se doloridas no chão - quando o pai desferiu, por
trás, um golpe agora de fato possante e liberador e ele voou, sangrando
violentamente, bem para dentro do seu quarto. A porta foi fechada ainda com a
bengala, depois houve por fim silêncio.
Capítulo
II
Quando
a conversa chegava a essa necessidade de ganhar dinheiro, Gregor se soltava da
porta e se atirava sobre o frio sofá de couro que se encontrava ao lado, pois
ficava ardendo de vergonha e tristeza. Freqüentemente passava noites inteiras
deitado ali, sem dormir um instante, apenas arranhando o couro durante horas.
Ou então não fugia ao grande esforço de empurrar uma cadeira até a janela, para
depois rastejar ruma ao peitoril e, escorado na cadeira, inclinar-se sobre a
janela. Pois efetivamente ele enxergava dia a dia com menos acuidade as coisas
mesmo pouco distantes; o hospital defronte, cuja visão freqüente demais ele
antes amaldiçoava, já não estava mais ao alcance da sua vista; na calma -
embora inteiramente urbana - rua Charlotte, poderia acreditar que da sua janela
estava olhando para um deserto, no qual o céu cinzento e a terra cinzenta se
uniam sem se distinguirem um do outro.
Capítulo III
Gregor
passava as noites e os dias quase completamente sem sono. Às vezes pensava em
reassumir os assuntos da família, exatamente como antes, na próxima vez em que
a porta se abrisse; nos seus pensamentos apareceram de novo, depois de muito
tempo, o chefe e o gerente, os caixeiros e os aprendizes, o contínuo tão
obtuso, dois, três amigos de outras firmas, uma arrumadeira de um hotel no
interior - recordação agradável e passageira -, uma moça que trabalhava na
caixa de uma loja de chapéus que ele tinha cortejado seriamente mas devagar
demais; todos eles surgiram entremeados com estranhos ou pessoas já esquecidas,
mas ao invés de o ajudarem e à família, estavam sem exceção inacessíveis, e ele
ficou feliz quando desapareceram. Mas depois ele já não estava mais com ânimo
nenhum para cuidar da família, sentia-se simplesmente cheio de ódio pelo mau
tratamento e embora não pudesse imaginar nada que lhe despertasse o apetite,
fazia no entanto planos sobre como poderia chegar à despensa para ali pegar
tudo o que lhe era devido, mesmo que não tivesse fome. (...)
O senhor Samsa virou-se para elas da sua cadeira e
ficou observando-as em silêncio por momento. Depois bradou:
-
Agora venham aqui. Parem de pensar no que passou. E tenham um pouco de
consideração por mim.
As
mulheres obedeceram-lhe logo, correram para ele, acariciaram-no e terminaram
rápido suas cartas.
Depois os três deixaram juntos o
apartamento, coisa que não faziam havia meses, e foram de bonde elétrico para o
ar livre no subúrbio da cidade. O bonde em que ficaram sentados sozinhos estava
totalmente iluminado pelo sol cálido. Recostados com conforto nos seus bancos,
conversaram sobre as perspectivas do futuro, descobrindo que, examinadas de
perto, elas não eram de modo algum más, pois os três tinham empregos muito
vantajosos e particularmente promissores - sobre os quais, na verdade, nunca
tinham feito perguntas pormenorizadas um ao outro. É claro que a grande melhora
imediata da situação viria, facilmente, da mudança de casa; eles agora queriam
um apartamento menor e mais barato, mas mais bem situado e sobretudo mais
prático do que o atual, que tinha sido escolhido ainda por Gregor. Enquanto
conversavam assim, ocorreu ao senhor e à senhora Samsa, quase que
simultaneamente, à vista da filha cada vez mais animada, que ela - apesar da
canseira dos últimos tempos, que empalidecera suas faces - havia florescido em
uma jovem bonita e opulenta. Cada vez mais silenciosos e se entendendo quase
inconscientemente através de olhares, pensaram que já era tempo de procurar um
bom marido para ela. E pareceu-lhes como que uma confirmação dos seus novos
sonhos e boas intenções quando, no fim da viagem, a irmã se levantou em
primeiro lugar e espreguiçou o corpo jovem.
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