sábado, 25 de julho de 2015

Metamorfose (KAFKA)

Metamorfose (excertos)
KAFKA, Franz. A metamorfose. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. Tradução de Modesto Carone.

Capítulo I

Quando certa manhã Gregor Samsa acordou de sonhos intranqüilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso. Estava deitado sobre suas costas duras como couraça e, ao levantar um pouco a cabeça, viu seu ventre abaulado, marrom, dividido por nervuras arqueadas, no topo de qual a coberta, prestes a deslizar de vez, ainda mal se sustinha. Suas numerosas pernas, lastimavelmente finas em comparação com o volume do resto do corpo, tremulavam desamparadas diante dos seus olhos.

- O que aconteceu comigo? - pensou.

Não era um sonho. Seu quarto, um autêntico quarto humano, só que um pouco pequeno demais,     permanecia calmo entre as quatro paredes bem conhecidas. (...)
Mas quando enfim estava com a cabeça diante da abertura da porta, feliz, verificou que seu corpo era demasiado largo para passar sem mais por ela. Ao pai, naturalmente, na sua condição atual, não ocorreu nem mesmo remotamente abrir a outra folha da porta, para oferecer a Gregor passagem suficiente. Sua idéia fixa era simplesmente que Gregor voltasse o mais rápido possível para o quarto. Jamais teria permitido os preparativos minuciosos de que Gregor necessitava para levantar-se e, talvez desse modo, passar pela porta. Ao invés disso, impelia agora Gregor com um ruído excepcional, como se não existisse nenhum obstáculo; a voz atrás dele já não soava como a de um pai apenas; realmente já não era uma brincadeira e Gregor forçou - acontecesse o que  quisesse - a entrada pela porta. Um lado do seu corpo se ergueu, permaneceu torto na abertura da porta, um dos seus flancos se esfolou inteiro, na porta branca ficaram manchas feias, ele logo se entalou e não poderia mais mover-se sozinho - as perninhas de um lado pendiam trêmulas no ar, as do outro comprimiam-se doloridas no chão - quando o pai desferiu, por trás, um golpe agora de fato possante e liberador e ele voou, sangrando violentamente, bem para dentro do seu quarto. A porta foi fechada ainda com a bengala, depois houve por fim silêncio.

Capítulo II

Quando a conversa chegava a essa necessidade de ganhar dinheiro, Gregor se soltava da porta e se atirava sobre o frio sofá de couro que se encontrava ao lado, pois ficava ardendo de vergonha e tristeza. Freqüentemente passava noites inteiras deitado ali, sem dormir um instante, apenas arranhando o couro durante horas. Ou então não fugia ao grande esforço de empurrar uma cadeira até a janela, para depois rastejar ruma ao peitoril e, escorado na cadeira, inclinar-se sobre a janela. Pois efetivamente ele enxergava dia a dia com menos acuidade as coisas mesmo pouco distantes; o hospital defronte, cuja visão freqüente demais ele antes amaldiçoava, já não estava mais ao alcance da sua vista; na calma - embora inteiramente urbana - rua Charlotte, poderia acreditar que da sua janela estava olhando para um deserto, no qual o céu cinzento e a terra cinzenta se uniam sem se distinguirem um do outro.

 Capítulo III

Gregor passava as noites e os dias quase completamente sem sono. Às vezes pensava em reassumir os assuntos da família, exatamente como antes, na próxima vez em que a porta se abrisse; nos seus pensamentos apareceram de novo, depois de muito tempo, o chefe e o gerente, os caixeiros e os aprendizes, o contínuo tão obtuso, dois, três amigos de outras firmas, uma arrumadeira de um hotel no interior - recordação agradável e passageira -, uma moça que trabalhava na caixa de uma loja de chapéus que ele tinha cortejado seriamente mas devagar demais; todos eles surgiram entremeados com estranhos ou pessoas já esquecidas, mas ao invés de o ajudarem e à família, estavam sem exceção inacessíveis, e ele ficou feliz quando desapareceram. Mas depois ele já não estava mais com ânimo nenhum para cuidar da família, sentia-se simplesmente cheio de ódio pelo mau tratamento e embora não pudesse imaginar nada que lhe despertasse o apetite, fazia no entanto planos sobre como poderia chegar à despensa para ali pegar tudo o que lhe era devido, mesmo que não tivesse fome. (...)
O senhor Samsa virou-se para elas da sua cadeira e ficou observando-as em silêncio por momento. Depois bradou:
- Agora venham aqui. Parem de pensar no que passou. E tenham um pouco de consideração por mim.
As mulheres obedeceram-lhe logo, correram para ele, acariciaram-no e terminaram rápido suas cartas.

            Depois os três deixaram juntos o apartamento, coisa que não faziam havia meses, e foram de bonde elétrico para o ar livre no subúrbio da cidade. O bonde em que ficaram sentados sozinhos estava totalmente iluminado pelo sol cálido. Recostados com conforto nos seus bancos, conversaram sobre as perspectivas do futuro, descobrindo que, examinadas de perto, elas não eram de modo algum más, pois os três tinham empregos muito vantajosos e particularmente promissores - sobre os quais, na verdade, nunca tinham feito perguntas pormenorizadas um ao outro. É claro que a grande melhora imediata da situação viria, facilmente, da mudança de casa; eles agora queriam um apartamento menor e mais barato, mas mais bem situado e sobretudo mais prático do que o atual, que tinha sido escolhido ainda por Gregor. Enquanto conversavam assim, ocorreu ao senhor e à senhora Samsa, quase que simultaneamente, à vista da filha cada vez mais animada, que ela - apesar da canseira dos últimos tempos, que empalidecera suas faces - havia florescido em uma jovem bonita e opulenta. Cada vez mais silenciosos e se entendendo quase inconscientemente através de olhares, pensaram que já era tempo de procurar um bom marido para ela. E pareceu-lhes como que uma confirmação dos seus novos sonhos e boas intenções quando, no fim da viagem, a irmã se levantou em primeiro lugar e espreguiçou o corpo jovem.



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