A partida
Osman
Lins
Hoje
revendo minhas atitudes quando vim embora, reconheço que mudei bastante. Verifico também que estava
aflito e que havia um fundo de mágoa ou desespero em minha impaciência. Eu
queria deixar minha casa, minha avó e seus cuidados. Estava farto de chegar a
horas certas, de ouvir reclamações; de ser vigiado, contemplado, querido. Sim,
também a afeição de minha avó incomodava-me. Era quase palpável, quase como um
objeto, uma túnica, um paletó justo que eu não pudesse despir.
Ela
vivia a comprar-me remédios, a censurar minha falta de modos, a olhar-me, a
repetir conselhos que eu já sabia de cor. Era boa demais, intoleravelmente boa
e amorosa e justa.
Na
véspera da viagem, enquanto eu a ajudava a arrumar as coisas na maleta, pensava
que no dia seguinte estaria livre e imaginava o amplo mundo no qual iria
desafogar-me: passeios, domingos sem missa, trabalho em vez de livros, mulheres
nas praias, caras novas. Como tudo era fascinante! Que viesse logo. Que as
horas corressem e eu me encontrasse imediatamente na posse de todos esses bens
que me aguardavam. Que as horas voassem, voassem.
Percebi
que minha avó não me olhava. A princípio, achei inexplicável que ela fizesse
isso, pois costumava fitar-me, longamente, com uma ternura que incomodava. Tive
raiva do que me parecia um capricho e, como represália, fui para a cama.
Deixei
a luz acesa. Sentia não sei que prazer em contar as vigas do teto, em olhar
para a lâmpada. Desejava que nenhuma dessas coisas me afetasse e irritava-me
por começar a entender que não conseguiria afastar-me delas sem emoção.
Minha
avó fechara a maleta e agora se movia, devagar, calada, fiel ao seu hábito de
fazer arrumações tardias. A quietude da casa parecia triste e ficava mais
nítida com os poucos ruídos aos quais me fixava: manso arrastar de chinelos,
cuidadoso abrir e lento fechar de gavetas, o tique-taque do relógio, tilintar
de talheres, de xícaras.
Por
fim, ela veio ao meu quarto, curvou-se:
-
Acordado?
Apanhou
o lençol e ia cobrir-me (gostava disto, ainda hoje o faz quando a visito); mas
pretextei calor, beijei sua mão enrugada e, antes que ela saísse, dei-lhe as
costas. Não consegui dormir. Continuava preso a outros rumores. E quando estes
se esvaíam, indistintas imagens me acossavam. Edifícios imensos, opressivos,
barulho de trens, luzes, tudo a afligir-me, persistente, desagradável - imagens
de febre.
Sentei-me
na cama, as têmporas batendo, o coração inchado, retendo uma alegria dolorosa,
que mais parecia um anúncio de morte. As horas passavam, cantavam grilos, minha
avó tossia e voltava-se no leito, as molas duras rangiam ao peso de seu corpo.
A tosse passou, emudeceram as molas; ficaram só os grilos e os relógios.
Deitei-me.
Passava
de meia-noite quando a velha cama gemeu: minha avó levantava-se. Abriu de leve
a porta de seu quarto, sempre de leve entrou no meu, veio chegando e ficou de pé
junto a mim. Com que finalidade? - perguntava eu. Cobrir-me ainda? Repetir-me
conselhos? Ouvi-a então soluçar e quase fui
sacudido por um acesso de raiva. Ela estava olhando para mim e chorando como se
eu fosse um cadáver - pensei. Mas eu não me parecia em nada com um morto, senão
no estar deitado. Estava vivo, bem vivo, não ia morrer.
Sentia-me
a ponto de gritar. Que me deixasse em paz e fosse chorar longe, na sala, na
cozinha, no quintal, mas longe de mim. Eu não estava morto. Afinal, ela
beijou-me a fronte e se afastou, abafando os soluços. Eu crispei as mãos nas
grades de ferro da cama, sobre as quais apoiei a testa ardente. E adormeci.
Acordei
pela madrugada. A princípio com tranqüilidade, e logo com obstinação, quis
novamente dormir. Inútil, o sono esgotara-se. Com precaução, acendi um fósforo:
passava das três. Restavam-me, portanto, menos de duas horas, pois o trem
chegaria às cinco. Veio-me então o desejo de não passar nem uma hora mais
naquela casa. Partir, sem dizer nada, deixar quanto antes minhas cadeias de
disciplina e de amor.
Com
receio de fazer barulho, dirigi-me à cozinha, lavei o rosto, os dentes,
penteei-me e, voltando ao meu quarto, vesti-me. Calcei os sapatos, sentei-me um
instante à beira da cama. Minha avó continuava dormindo.
Deveria fugir ou falar com ela? Ora,
algumas palavras... Que me custava
cordá-la, dizer-lhe adeus?
Ela
estava encolhida, pequenina, envolta numa coberta escura. Toquei-lhe no ombro,
ela se moveu, descobriu-se. Quis levantar-se e eu procurei detê-la. Não era
preciso, eu tomaria um café na estação. Esquecera de falar com um colega e, se
fosse esperar, talvez não houvesse mais tempo. Ainda assim, levantou-se.
Ralhava comigo por não tê-la despertado antes, acusava-se de ter dormido muito.
Tentava sorrir.
Não
sei por que motivo, retardei ainda a partida. Andei pela casa, cabisbaixo, à
procura de objetos imaginários, enquanto ela me seguia, abrigada em sua
coberta. Eu sabia que desejava beijar-me, prender-se a mim, e à simples idéia
desses gestos, estremeci. Como seria se, na hora do adeus, ela chorasse?
Enfim,
beijei sua mão, bati-lhe de leve na cabeça. Creio mesmo que lhe surpreendi um
gesto de aproximação, decerto na esperança de um abraço final. Esquivei-me,
apanhei a maleta e, ao fazê-lo, lancei um rápido olhar para a mesa
(cuidadosamente posta para dois, com a humilde louça dos grandes dias e a velha
toalha branca, bordada, que só se usava em nossos aniversários).
Fonte
dos contos: Os Cem Melhores Contos
Brasileiros do Século , Org de ITALO
MORICONI, Ed. Objetiva Ltda.
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