por Machado de Assis
— Não me expliques
nada, disse eu entrando no quarto; é o negócio da baronesa.
Norberto enxugou
os olhos e sentou-se na cama, com as pernas pendentes. Eu, cavalgando uma
cadeira, pousei a barba no dorso, e proferi este breve discurso:
— Mas, meu pateta,
quantas vezes queres que te diga que acabes com essa paixão ridícula e
humilhante? Sim, senhor, humilhante e ridícula, porque ela não faz caso de ti;
e demais, é arriscado. Não? Verás se o é, quando o barão desconfiar que lhe
arrastas a asa à mulher. Olha que ele tem cara de maus bofes.
Norberto meteu as
unhas na cabeça, desesperado. Tinha-me escrito cedo, pedindo que fosse
confortá-lo e dar-lhe algum conselho; esperara-me na rua, até perto de uma hora
da noite, defronte da casa de pensão em que eu morava; contava-me na carta que
não dormira, que recebera um golpe terrível, falava em atirar-se ao mar. Eu,
apesar de outro golpe que também recebera, acudi ao meu pobre Norberto. Éramos da
mesma idade, estudávamos medicina, com a diferença que eu repetia o terceiro
ano, que perdera, por vadio. Norberto vivia com os pais; não me cabendo igual
fortuna, por havê-los perdido, vivia de uma mesada que me dava um tio da Bahia,
e das dívidas que o bom velho pagava semestralmente. Pagava-as, e escrevia-me
logo uma porção de coisas amargas, concluindo sempre que, pelo menos, fosse
estudando até ser doutor. Doutor, para quê? dizia comigo. Pois se nem o sol,
nem a lua, nem as moças, nem os bons charutos Villegas eram doutores, que
necessidade tinha eu de o ser? E toca a rir, a folgar, a deixar correr semanas
e credores.
Falei de um golpe
recebido. Era uma carta do tio, vinda com a do Norberto, naquela mesma manhã.
Abri-a antes da outra, e li-a com pasmo. Já me não tuteava; dizia
cerimoniosamente: “Sr. Simeão Antônio de Barros, estou farto de gastar à toa o
meu dinheiro com o senhor. Se quiser concluir os estudos, venha matricular-se
aqui, e morar comigo. Se não, procure por si mesmo recursos; não lhe dou mais
nada.” Amarrotei o papel, finquei os olhos numa litografia muito ruim do
visconde de Sepetiba, que já achei pendente de um prego, no meu quarto de
pensão, e disse-lhe os nomes mais feios, de maluco para baixo. Bradei que podia
guardar o seu dinheiro, que eu tinha vinte anos — o primeiro dos direitos do
homem, anterior aos tios e outras convenções sociais.
A imaginação,
madre amiga, apontou-me logo uma infinidade de recursos, que bastavam a
dispensar os magros cobres de um velho avarento; mas, passada essa primeira
impressão, e relida a carta, entrei a ver que a solução era mais árdua do que
parecia. Os recursos podiam ser bons e até certos; mas eu estava tão afeito a
ir à Rua da Quitanda receber a pensão mensal e a gastá-la em dobro, que mal
podia adotar outro sistema.
Foi neste ponto
que abri a carta do amigo Norberto e corri à casa dele. Já sabem o que lhe
disse; viram que ele meteu as unhas na cabeça, desesperado. Saibam agora que,
depois do gesto, disse com olhar sombrio que esperava de mim outros conselhos.
— Quais?
Não me respondeu.
— Que compres uma
pistola ou uma gazua? algum narcótico?
— Para que estás
caçoando comigo?
— Para fazer-te
homem.
Norberto deu de
ombros, com um laivozinho de escárnio ao canto da boca. Que homem? Que era ser
homem, senão amar a mais divina criatura do mundo e morrer por ela?
A baronesa de
Magalhães, causa daquela demência, viera pouco antes da Bahia, com o marido,
que antes do baronato, adquirido para satisfazer a noiva, era Antônio José
Soares de Magalhães. Vinham casados de fresco; a baronesa tinha menos trinta
anos que o barão; ia em vinte e quatro. Realmente era bela. Chamavam-lhe, em
família, Iaiá Lindinha. Como o barão era velho amigo do pai de Norberto, as
duas famílias uniram-se desde logo.
— Morrer por ela?
disse eu.
Jurou-me que sim;
era capaz de matar-se. Mulher misteriosa! A voz dela entrava-lhe pelos ossos...
E, dizendo isto, rolava na cama, batia com a cabeça, mordia os travesseiros. Às
vezes, parava, arquejando; logo depois tornava às mesmas convulsões, abafando
os soluços e os gritos, para que os não ouvissem do primeiro andar.
Já acostumado às
lágrimas do meu amigo, desde a vinda da baronesa, esperei que elas acabassem,
mas não acabavam. Descavalguei a cadeira, fui a ele, bradei-lhe que era uma
criançada, e despedi-me; Norberto pegou-me na mão, para que ficasse, não me
tinha dito ainda o principal.
— É verdade; que
é?
— Vão-se embora.
Estivemos lá ontem, e ouvi que embarcam sábado.
— Para a Bahia?
— Sim.
— Então, vão
comigo.
Contei-lhe o caso
da carta, e as ordens de meu tio para ir matricular-me na Bahia, e estudar ao
pé dele. Norberto escutou-me alvoroçado. Na Bahia? Iríamos juntos; éramos
íntimos, os pais não recusariam este favor à nossa jovem amizade. Confesso que
o plano pareceu-me excelente, e demo-nos a ele com afinco. A mãe, apesar de
muita lágrima que teria de verter ao despegar-se do filho, cedeu mais
prontamente do que supúnhamos. O pai é que não cedeu nada. Não houve rogos nem
empenhos; o próprio barão, que eu tive a arte de trazer ao nosso propósito, não
alcançou do velho amigo que deixasse ir o filho, nem ainda com a promessa de o
aposentar em casa e velar por ele. O pai foi inflexível.
Podem imaginar o
desespero do meu amigo. Na noite de sexta-feira esteve em casa dela, com a
família, até onze horas; mas, com o pretexto de passar comigo a última noite da
minha estada aqui, veio realmente chorar tantas e tais lágrimas, como nunca as
vi chorar jamais, nem antes nem depois. Não podia descrer da paixão, nem
presumir consolá-la; era a primeira. Até então, ambos nós só conhecíamos os
trocos miúdos do amor; e, por desgraça dele, a primeira moeda grande que
achara, não era ouro nem prata, senão ferro, duro ferro, como a do velho
Licurgo, forjada com o mesmo amargo vinagre.
Não dormimos.
Norberto chorava, arrepelava-se, pedia a morte, construía planos absurdos ou
terríveis. Eu, arranjando as malas, ia-lhe dizendo alguma coisa que o
consolasse; era pior, era como se falasse de dança a uma perna dolorida.
Consegui que fumasse um cigarro, depois outro, e afinal fumou-os às dúzias, sem
acabar nenhum. Às três horas tratava do modo de fugir ao Rio de Janeiro — não
logo, mas daí a dias, no primeiro vapor. Tirei-lhe essa idéia da cabeça
unicamente no interesse dele próprio.
— Ainda se fosse
útil, vá, disse-lhe eu; mas ir sem certeza de nada, ir dar com o nariz na
porta, porque a mulher, se não gosta de ti, e te vê lá, é capaz de perceber
logo o motivo da tua viagem, e não te recebe.
— Que sabes tu?
— Pode receber-te,
mas não há certeza, acho eu. Crês que ela goste de ti?
— Não digo que
sim, nem que não.
Contou-me
episódios, gestos, ditos, coisas ambíguas ou insignificantes; depois vinha uma
reticência de lágrimas, murros no peito, clamor de angústia, a dor ia-se-me
comunicando; padecia com ele, a razão cedia à compaixão, as nossas naturezas
fundiam-se em uma só lástima. Daí esta promessa que lhe fiz.
— Tenho uma idéia.
Vou com eles, já nos conhecemos, é provável que freqüente a casa; eu então
farei uma coisa: sondo-a a teu respeito. Se vir que nem pensa em ti, escrevo-te
francamente que penses em outra coisa; mas se achar alguma inclinação, pouca
que seja, aviso-te, e, ou por bem ou por mal, embarca.
Norberto aceitou
alvoroçado a proposta: era uma esperança. Fez-me jurar que cumpriria tudo, que
a observaria bem, sem temor, e, pela sua parte, jurou-me que não hesitaria um
instante. E teimava comigo que não perdesse nada; que, às vezes, um indício
pequeno valia muito, uma palavrinha era um livro; que, se pudesse, aludisse ao
desespero em que o deixava. Para peitar a minha sagacidade, afirmou que o
desengano matá-lo-ia, porque esse amor, eterno como era, iria fartar-se na
morte e na eternidade. Não achei boca para replicar-lhe que isto era o mesmo
que obrigar-me a só mandar boas notícias. Naquela ocasião, apenas sabia chorar
com ele.
A aurora registrou
o nosso pacto imoral. Não consenti que ele fosse a bordo despedir-se. Parti.
Não falemos da viagem... Ó mares de Homero, flagelados por Euros, Bóreas e o
violento Zéfiro, mares épicos, podeis sacudir Ulisses, mas não lhe dais as
aflições do enjôo. Isso é bom para os mares de agora, e particularmente para
aqueles que me levaram daqui à Bahia. Só depois de chegar ante a cidade, ousei
aparecer à nossa dona magnífica, tão senhora de si, como se acabasse de dar um
passeio apenas longo.
— Não tem saudades
do Rio de Janeiro? disse-lhe eu logo, de intróito.
— Certamente.
O barão veio
indicar-me os lugares que a gente via do paquete — ou a direção de outros.
Ofereceu-me a casa dele, no Bonfim. Meu tio veio a bordo, e, por mais que quisesse
fazer-se tétrico, senti-lhe o coração amigo. Via-me, único filho da irmã finada
— e via-me obediente. Não podia haver para mim melhores impressões de entrada.
Divina juventude! as coisas novas pagavam-me em dobro as coisas velhas.
Dei os primeiros
dias ao conhecimento da cidade; mas não tardou que uma carta do meu amigo
Norberto me chamasse a atenção para ele. Fui ao Bonfim. A baronesa — ou Iaiá
Lindinha, que era ainda o nome dado por toda a gente — recebeu-me com tanta
graça, e o marido era tão hospedeiro e bom, que me envergonhei da particular
comissão que trazia. Mas durou pouco a vergonha, vi o desespero do meu amigo, e
a necessidade de consolá-lo ou desenganá-lo era superior a qualquer outra
consideração. Confesso até uma singularidade; agora que estavam separados
entrou-me na alma a esperança de que ela não desgostasse dele — justamente o
que eu negava antes. Talvez fosse o desejo de o ver feliz; podia ser uma
instigação da vaidade que me acenasse com a vitória em favor do desgraçado.
Naturalmente, conversamos
do Rio de Janeiro. Eu dizia-lhe as minhas saudades, falava das coisas que
estava acostumado a ver, das ruas que faziam parte da minha pessoa, das caras
de todos os dias, das casas, das afeições... Oh! as afeições eram os laços mais
apertados. Tinha amigos: os pais de Norberto...
— Dois santos,
interrompeu a moça; meu marido, que conhece o velho desde muitos anos, conta
dele coisas curiosas. Sabe que casou por uma paixão fortíssima?
— Adivinha-se. O
filho é o fruto expressivo do amor dos dois. Conheceu bem o meu pobre Norberto?
— Conheci; ia lá à
casa muitas vezes.
— Não conheceu.
Iaiá Lindinha
franziu levemente a testa.
— Perdoe-me se a
desminto, continuei com vivacidade. Não conheceu a melhor alma, a mais pura e a
mais ardente que Deus criou. Talvez que ache parcial por ser amigo. A verdade é
que ninguém me prende mais ao Rio de Janeiro. Coitado do meu Norberto! Não
imagina que homem talhado para dois ofícios ao mesmo tempo, arcanjo e herói —
para dizer à terra as delícias do céu, e para escalar o céu, se for preciso ir
lá levar as lamentações humanas...
Só no fim desta
fala compreendi que era ridícula. Iaiá Lindinha, ou não a entendeu assim, ou
disfarçou a opinião; disse-me somente que a minha amizade era entusiasta, mas
que o meu amigo parecia boa pessoa. Não era alegre, ou tinha crises
melancólicas. Disseram-lhe que ele estudava muito...
— Muito.
Não insisti para
não atropelar os acontecimentos... Que o leitor me não condene sem remissão nem
agravo. Sei que o papel que eu fazia não era bonito; mas já lá vão vinte e sete
anos. Confio do Tempo, que é um insigne alquimista. Dá-se-lhe um punhado de
lodo, ele o restitui em diamantes; quando menos, em cascalho. Assim é
que, se um homem de Estado escrever e publicar as suas memórias, tão sem
escrúpulo, que lhes não falte nada, nem confidências pessoais, nem segredos do
governo, nem até amores, amores particularíssimos e inconfessáveis, verá que
escândalo levanta o livro. Dirão, e dirão bem, que o autor é um cínico, indigno
dos homens que confiaram nele e das mulheres que o amaram. Clamor sincero e
legítimo, porque o caráter público impõe muitos resguardos; os bons costumes e
o próprio respeito às mulheres amadas constrangem ao silêncio...
...Mas deixai
pingar os anos na cuba de um século. Cheio o século, passa o livro a documento
histórico, psicológico, anedótico. Hão de lê-lo a frio; estudar-se-á nele a
vida íntima do nosso tempo, a maneira de amar, a de compor os ministérios e
deitá-los abaixo, se as mulheres eram mais animosas que dissimuladas, como é que
se faziam eleições e galanteios, se eram usados xales ou capas, que veículos
tínhamos, se os relógios eram trazidos à direita ou à esquerda, e multidão de
coisas interessantes para a nossa história pública e íntima. Daí a esperança
que me fica, de não ser condenado absolutamente pela consciência dos que me
lêem. Já lá vão vinte e sete anos!
Gastei mais de
meio em bater à porta daquele coração, a ver se lá achava o Norberto; mas
ninguém me respondia de dentro, nem o próprio marido. Não obstante, as cartas
que mandava ao meu pobre amigo, se não levavam esperanças, também não levavam
desenganos. Houve-as até mais esperançosas que desenganadas. A afeição que lhe
tinha e o meu amor-próprio conjugavam as forças todas para espertar nela a
curiosidade e a sedução de um mistério remoto e possível.
Já então as nossas
relações eram familiares. Visitava-os a miúdo. Quando lá não ia três noites
seguidas, vivia aflito e inquieto; corria a vê-los na quarta noite, e era ela
que me esperava ao portão da chácara, para dizer-me nomes feios, ingrato,
preguiçoso, esquecido. Os nomes foram cessando, mas a pessoa não deixava de
estar ali à espera, com a mão prestes a apertar a minha — às vezes, trêmula —,
ou seria a minha que tremia; não sei.
— Amanhã não posso
vir, dizia-lhe algumas noites, à despedida, baixo, no vão de uma janela.
— Por quê?
Explicava-lhe a
causa, estudo ou alguma obrigação de meu tio. Nunca tentou dissuadir-me de
promessa, mas ficava desconsolada. Comecei a escrever menos ao Norberto e a
falar pouco de Iaiá Lindinha, como quem não ia à casa dela. Tinha fórmulas
diferentes: “Ontem encontrei o barão no largo do Palácio; disse-me que a mulher
está boa.” Ou então: “Sabes quem vi há três dias no teatro? A baronesa.” Não
relia as cartas, para não encarar a minha hipocrisia. Ele, pela sua parte,
também ia escrevendo menos, e bilhetes curtos. Entre mim e a moça não aparecia
mais o nome de Norberto; convencionamos, sem palavras, que era um defunto, e um
triste defunto sem galas mortuárias.
Beirávamos o
abismo, ambos teimando que era um reflexo da cúpula celeste — incongruência
para os que não andam namorados. A morte resolveu o problema, levando consigo o
barão, por meio de um ataque de apoplexia, no dia vinte e três de março de
1861, às seis horas da tarde. Era um excelente homem, a quem a viúva pagou em
preces o que lhe não dera em amor.
Quando eu lhe
pedi, três meses depois, que, acabado o luto, casasse comigo, Iaiá Lindinha não
estranhou nem me despediu. Ao contrário, respondeu que sim, mas não tão cedo;
punha uma condição: que concluísse primeiro os estudos, que me formasse. E
disse isto com os mesmos lábios, que pareciam ser o único livro do mundo, o
livro universal, a melhor das academias, a escola das escolas. Apelei dela para
ela; escutou-me inflexível. A razão que me deu foi que meu tio podia recear
que, uma vez casado, interromperia a carreira.
— E com razão,
concluiu. Ouça-me: só me caso com um doutor.
Cumprimos ambos a
promessa. Durante algum tempo andou ela pela Europa, com uma cunhada e o marido
desta; e as saudades foram então as minhas disciplinas mais duras. Estudei
pacientemente; despeguei-me de todas as vadiações antigas. Recebi o capelo na
véspera da bênção matrimonial; e posso dizer, sem hipocrisia, que achei o latim
do padre muito superior ao discurso acadêmico.
Semanas depois,
pediu-me Iaiá Lindinha que viéssemos ao Rio de Janeiro. Cedi ao pedido,
confesso que um pouco atordoado. Cá viria achar o meu amigo Norberto, se é que
ele ainda residia aqui. Ia em mais de três anos que nos não escrevíamos; já antes
disso as nossas cartas eram breves e sem interesse. Saberia do nosso casamento?
Dos precedentes? Viemos; não contei nada a minha mulher.
Para quê? Era
dar-lhe notícia de uma aleivosia oculta, dizia comigo. Ao chegar, pus esta
questão a mim mesmo, se esperaria a visita dele, se iria visitá-lo antes;
escolhi o segundo alvitre, para avisá-lo das coisas. Engenhei umas
circunstâncias especiais, curiosas, acarretadas pela Providência, cujos fios
ficam sempre ocultos aos homens. Não me ria, note-se bem; minha imaginação
compunha tudo isso com seriedade.
No fim de quatro
dias, soube que Norberto morava para os lados do Rio Comprido; estava casado.
Tanto melhor. Corri a casa dele. Vi no jardim uma preta amamentando uma
criança, outra criança de ano e meio, que recolhia umas pedrinhas do chão,
acocorada.
— Nhô Bertinho,
vai dizer a mamãe que está aqui um moço procurando papai.
O menino obedeceu;
mas, antes que voltasse, chegava de fora o meu velho amigo Norberto. Conheci-o
logo, apesar das grandes suíças que usava; lançamo-nos nos braços um do outro.
— Tu aqui? Quando
chegaste?
— Ontem.
— Estás mais
gordo, meu velho! Gordo e bonito. Entremos. Que é? continuou ele inclinando-se
para Nhô Bertinho, que lhe abraçava uma das pernas.
Pegou dele,
alçou-o, deu-lhe trinta mil beijos ou pouco menos; depois, tendo-o num braço,
apontou para mim.
— Conheces este
moço?
Nhô Bertinho
olhava espantado, com o dedo na boca. O pai contou-lhe então que eu era um
amigo de papai, muito amigo, desde o tempo em que vovô e vovó eram vivos...
— Teus pais
morreram?
Norberto fez-me
sinal que sim, e acudiu ao filho, que com as mãozinhas espalmadas pegava da
cara do pai, pedindo-lhe mais beijos. Depois, foi à criança que mamava, não a
tirou do regaço da ama, mas disse-lhe muitas coisas ternas, chamou-me para
vê-la; era uma menina. Revia-se nela, encantado. Tinha cinco meses por ora; mas
se eu voltasse ali quinze anos depois, veria que mocetona. Que bracinhos! que
dedos gordos! Não podendo ter-se, inclinou-se e beijou-a.
— Entra, anda ver
minha mulher. Jantas conosco.
— Não posso.
— Mamãe está
espiando, disse Nhô Bertinho.
Olhei, vi uma moça
à porta da sala, que dava para o jardim; a porta estava aberta, ela
esperava-nos. Subimos os cinco degraus; entramos na sala. Norberto pegou-lhe
nas mãos, e deu-lhes dois beijos. A moça quis recuar, não pôde, ficou muito
corada.
— Não te vexes,
Carmela, disse ele. Sabes quem é este sujeito? É aquele Barros de quem te falei
muitas vezes, um Simeão, estudante de medicina... A propósito, por que é que
não me respondeste à participação do casamento?
— Não recebi nada,
respondi.
— Pois afirmo que
foi pelo correio.
Carmela ouvia o
marido com admiração; ele tanto fez, que foi sentar-se ao pé dela, para lhe
reter a mão, às escondidas. Eu fingia não ver nada; falava dos tempos
acadêmicos, de alguns amigos, da política, da guerra, tudo para evitar que ele
me perguntasse se estava ou não casado. Já me arrependia de ter ido ali; que
lhe diria, se ele tocasse no ponto e indagasse da pessoa? Não me falou em nada;
talvez soubesse tudo.
A conversação
prolongou-se; mas eu teimei em sair, e levantei-me. Carmela despediu-se de mim
com muita afabilidade. Era bela; os olhos pareciam dar-lhe um resplendor de
santa. Certo é que o marido tinha-lhe adoração.
— Viste-a bem?
perguntou-me ele à porta do jardim. Não te digo o sentimento que nos prende,
estas coisas sentem-se, não se exprimem. De que sorris? Achas-me naturalmente
criança. Creio que sim; criança eterna, como é eterno o meu amor.
Entrei no tílburi,
prometendo ir lá jantar um daqueles dias.
— Eterno! disse
comigo. Tal qual o amor que ele tinha a minha mulher.
E, voltando-me
para o cocheiro, perguntei-lhe:
— O que é eterno?
— Com perdão de V.
S., acudiu ele, mas eu acho que eterno é o fiscal da minha rua, um maroto que,
se lhe não quebro a cara um destes dias, a minha alma se não salve. Pois o
maroto parece eterno no lugar; tem aí não sei que compadres... Outros dizem
que... Não me meto nisso... Lá quebrar-lhe a cara...
Não ouvi o resto;
fui mergulhando em mim mesmo, ao zunzum do cocheiro. Quando dei por mim, estava
na Rua da Glória. O demônio continuava a falar; paguei, e desci até à praia da
Glória, meti-me pela do Russell e fui sair à do Flamengo. O mar batia com
força. Moderei o passo, e pus-me a olhar para as ondas que vinham ali bater e
morrer. Cá dentro, ressoava, como um trecho musical, a pergunta que fizera ao
cocheiro: O que é eterno? As ondas, mais discretas que ele, não me contaram os
seus particulares, vinham vindo, morriam, vinham vindo, morriam.
Cheguei ao Hotel
de Estrangeiros ao declinar da tarde. Minha mulher esperava-me para jantar. Eu,
ao entrar no quarto, peguei-lhe das mãos, e perguntei-lhe:
— O que é eterno,
Iaiá Lindinha?
Ela, suspirando:
— Ingrato! é o
amor que te tenho.
Jantei sem
remorsos; ao contrário, tranqüilo e jovial. Coisas do Tempo! Dá-se-lhe um
punhado de lodo, ele o restitui em diamantes...
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