por Machado de Assis
E vieram todos os oficiais... e o resto do povo, desde o pequeno até ao grande.
E disseram ao profeta Jeremias: Seja aceita a nossa
súplica na tua presença.
JEREM. xlii [1.2].
Não me perguntem pela família do dr. Jeremias Halma, nem o que é que ele veio fazer ao Rio de Janeiro, naquele ano de 1768, governando o conde de Azambuja, que a princípio se disse o mandara buscar; esta versão durou pouco. Veio, ficou e morreu com o século. Posso afirmar que era médico e holandês. Viajara muito, sabia toda a química do tempo, e mais alguma; falava correntemente cinco ou seis línguas vivas e duas mortas. Era tão universal e inventivo, que dotou a poesia malaia com um novo metro, e engendrou uma teoria da formação dos diamantes. Não conto os melhoramentos terapêuticos, e outras muitas coisas, que o recomendam à nossa admiração. Tudo isso, sem ser casmurro, nem orgulhoso. Ao contrário, a vida e a pessoa dele eram como a casa que um patrício lhe arranjou na Rua do Piolho, casa singelíssima, onde ele morreu pelo natal de 1799. Sim, o dr. Jeremias era simples, lhano, modesto, tão modesto que... Mas isto seria transtornar a ordem dum conto. Vamos ao princípio.
No fim da Rua do
Ouvidor, que ainda não era a via dolorosa dos maridos pobres, perto da antiga
Rua dos Latoeiros, morava por esse tempo um tal Tomé Gonçalves, homem abastado,
e, segundo algumas induções, vereador da Câmara. Vereador ou não, este Tomé
Gonçalves não tinha só dinheiro, tinha também dívidas, não poucas, nem todas
recentes. O descuido podia explicar os seus atrasos, a velhacaria também; mas
quem opinasse por uma ou outra dessas interpretações, mostraria que não sabe
ler uma narração grave. Realmente, não valia a pena dar-se ninguém à tarefa de
escrever algumas laudas de papel para dizer que houve, nos fins do século
passado, um homem que, por velhacaria ou desleixo, deixava de pagar aos
credores. A tradição afirma que este nosso concidadão era exato em todas as
coisas, pontual nas obrigações mais vulgares, severo e até meticuloso. A
verdade é que as ordens terceiras e irmandades que tinham a fortuna de o
possuir (era irmão-remido de muitas, desde o tempo em que usava pagar), não lhe
regateavam provas de afeição e apreço; e, se é certo que foi vereador, como
tudo faz crer, pode-se jurar que o foi a contento da cidade.
Mas então...? Lá
vou; nem é outra a matéria do escrito, senão esse curioso fenômeno, cuja causa,
se a conhecemos, foi porque a descobriu o dr. Jeremias. Em uma tarde de
procissão, Tomé Gonçalves, trajado com o hábito de uma ordem terceira, ia
segurando uma das varas do pálio, e caminhando com a placidez de um homem que
não faz mal a ninguém. Nas janelas e ruas estavam muitos dos seus credores;
dois, entretanto, na esquina do Beco das Cancelas (a procissão descia a Rua do
Hospício), depois de ajoelhados, rezados, persignados e levantados, perguntaram
um ao outro, se não era tempo de recorrer à justiça.
— Que é que me
pode acontecer? dizia um deles. Se brigar comigo, melhor; não me levará mais
nada de graça. Não brigando, não lhe posso negar o que me pedir, e na esperança
de receber os atrasados, vou fiando... Não, senhor; não pode continuar assim.
— Pela minha
parte, acudiu o outro, se ainda não fiz nada, é por causa da minha dona, que é
medrosa, e entende que não devo brigar com pessoa tão importante... Mas eu como
ou bebo da importância dos outros? E as minhas cabeleiras?
Este era um
cabeleireiro da Rua da Vala defronte da Sé, que vendera ao Tomé Gonçalves dez
cabeleiras, em cinco anos, sem lhe haver nunca um real. O outro era alfaiate, e
ainda maior credor que o primeiro. A procissão passara inteiramente; eles
ficaram na esquina, ajustando o plano de mandar os meirinhos ao Tomé Gonçalves.
O cabeleireiro advertiu que outros muitos credores só esperavam um sinal para
cair em cima do devedor remisso; e o alfaiate lembrou a conveniência de meter
na conjuração o mata-sapateiro, que vivia desesperado. Só a ele devia o Tomé
Gonçalves mais de oitenta mil-réis. Nisso estavam, quando por trás deles ouviram
uma voz, com sotaque estrangeiro, perguntando por que motivo conspiravam contra
um homem doente. Voltaram-se, e, dando com o dr. Jeremias, desbarretaram-se os
dois credores, tomados de profunda veneração; em seguida disseram que tanto não
era doente o devedor, que lá ia andando na procissão, muito teso, pegando uma
das varas do pálio.
— Que tem isso?
interrompeu o médico; ninguém lhes diz que está doente dos braços nem das
pernas...
— Do coração? do
estômago?
— Nem coração, nem
estômago, respondeu o dr. Jeremias. E continuou, com muita doçura, que se
tratava de negócios altamente especulativos, que não podia dizer ali, na rua,
nem sabia mesmo se eles chegariam a entendê-lo. Se eu tiver de pentear uma
cabeleira ou talhar um calção — acrescentou para os não afligir —, é provável
que não alcance as regras dos seus ofícios tão úteis, tão necessários ao
Estado... Eh! eh! eh!
Rindo assim,
amigavelmente cortejou-os e foi andando. Os dois credores ficaram embasbacados.
O cabeleireiro foi o primeiro que falou, dizendo que a notícia do dr. Jeremias
não era tal que os devesse afrouxar no propósito de cobrar as dívidas. Se até
os mortos pagam, ou alguém por eles, reflexionou o cabeleireiro, não é muito
exigir aos doentes igual obrigação. O alfaiate, invejoso da pilhéria, fê-la sua
cosendo-lhe este babado: — Pague e cure-se.
Não foi dessa
opinião o mata-sapateiro, que entendeu haver alguma razão secreta nas palavras
do doutor Jeremias, e propôs que primeiro se examinasse bem o que era, e depois
se resolvesse o mais idôneo. Convidaram então outros credores a um
conciliábulo, no domingo próximo, em casa de uma D. Aninha, para as bandas do
Rocio, a pretexto de um batizado. A precaução era discreta, mas não fazer supor
ao intendente da polícia que se tratava de alguma tenebrosa maquinação contra o
Estado. Mal anoiteceu, começaram a entrar os credores, embuçados em capotes, e,
como a iluminação pública só veio a principiar com o vice-reinado do conde de
Resende, levava cada qual uma lanterna na mão, ao uso do tempo, dando assim ao
conciliábulo um rasgo pinturesco e teatral. Eram trinta e tantos, perto de
quarenta — e não eram todos.
Longo foi o
debate; nenhuma opinião chegava a concertar os espíritos. Uns inclinavam-se à
demanda, outros à espera, não poucos aceitavam o alvitre de consultar o dr.
Jeremias. Cinco ou seis partidários deste parecer não o defendiam senão com a
intenção secreta e disfarçada de não fazer coisa nenhuma; eram os servos do
medo e da esperança. O cabeleireiro opunha-se-lhe, e perguntava que moléstia
haveria que impedisse um homem de pagar o que deve. Mas o mata-sapateiro: —
“Sr. compadre, nós não entendemos desses negócios; lembre-se que o doutor é
estrangeiro, e que nas terras estrangeiras sabem coisas que nunca lembraram ao
diabo. Em todo caso, só perdemos algum tempo e nada mais.” Venceu este parecer;
deputaram o sapateiro, o alfaiate e o cabeleireiro para entenderem-se com o dr.
Jeremias, em nome de todos, e o conciliábulo dissolveu-se na patuscada.
Terpsícore bracejou e perneou diante deles as suas graças jucundas, e tanto
bastou para que alguns esquecessem a úlcera secreta que os roía. Eheu!
Fugaces... Nem mesmo a dor é constante.
No dia seguinte o
dr. Jeremias recebeu os três credores, entre sete e oito horas da manhã.
“Entrem, entrem”... E com o seu largo carão holandês, e o riso derramado pela
boca fora, como um vinho generoso de pipa que se rompeu, o grande médico veio
em pessoa abrir-lhes a porta. Estudava nesse momento uma cobra, morta de
véspera, no morro de Santo Antônio; mas a humanidade, costumava ele dizer, é
anterior à ciência. Convidou os três a sentarem-se nas três únicas cadeiras
devolutas; a quarta era a dele; as outras, umas cinco ou seis, estavam
atulhadas de objetos de toda a casta.
Foi o
mata-sapateiro quem expôs a questão; era dos três o que reunia maior cópia de
talentos diplomáticos. Começou dizendo que o engenho do “sr. doutor” ia salvar
da miséria uma porção de famílias, e não seria a primeira nem a última grande
obra de um médico que, não desfazendo nos da terra, era o mais sábio de quantos
cá havia desde o governo de Gomes Freire. Os credores de Tomé Gonçalves não
tinham outra esperança. Sabendo que o “sr. doutor” atribuía os atrasos daquele
cidadão a uma doença, tinham assentado que primeiro se tentasse a cura, antes
de qualquer recurso à justiça. A justiça ficaria para o caso de desespero. Era
isto o que vinham dizer-lhe, em nome de dezenas de credores; desejavam saber se
era verdade que, além de outros achaques humanos, havia o de não pagar as
dívidas, se era mal incurável, e, não o sendo, se as lágrimas de tantas
famílias...
— Há uma doença
especial, interrompeu o dr. Jeremias, visivelmente comovido, um lapso da
memória; o Tomé Gonçalves perdeu inteiramente a noção de pagar. Não é por
descuido, nem de propósito que ele deixa de saldar as contas; é porque esta
idéia de pagar, de entregar o preço de uma coisa, varreu-se-lhe da cabeça.
Conheci isto há dois meses, estando em casa dele, quando ali foi o prior do Carmo,
dizendo que ia “pagar-lhe a fineza de uma visita”. Tomé Gonçalves, apenas o
prior se despediu, perguntou-me o que era pagar; acrescentou que, alguns dias
antes, um boticário lhe dissera a mesma palavra, sem nenhum outro
esclarecimento, parecendo-lhe até que já a ouvira a outras pessoas; por ouvi-la
da boca do prior, supunha ser latim. Compreendi tudo; tinha estudado a moléstia
em várias partes do mundo, e compreendi que ele estava atacado do lapso. Foi
por isso que disse outro dia a estes dois senhores que não demandassem um homem
doente.
— Mas então,
aventurou o mata, pálido, o nosso dinheiro está completamente perdido...
— A moléstia não é
incurável, disse o médico.
— Ah!
— Não é; conheço e
possuo a droga curativa, e já a empreguei em dois grandes casos: — um barbeiro,
que perdera a noção do espaço, e, à noite estendia a mão para arrancar as
estrelas do céu, e uma senhora da Catalunha, que perdera a noção do marido. O
barbeiro arriscou muitas vezes a vida, querendo sair pelas janelas mais altas
das casas, como se estivesse ao rés-do-chão...
— Santo Deus!
exclamaram os três credores.
— É o que lhes
digo, continuou placidamente o médico. Quanto à dama catalã, a princípio
confundia o marido com um licenciado Matias, alto e fino, quando o marido era
grosso e baixo; depois com um capitão, D. Hermógenes, e, no tempo em que
comecei a tratá-la com um clérigo. Em três meses ficou boa. Chamava-se D.
Agostinha.
Realmente, era uma
droga miraculosa. Os três credores estavam radiantes de esperança; tudo fazia
crer que o Tomé Gonçalves padecia do lapso, e, uma vez que a droga existia, e o
médico a tinha em casa...
Ah ! mas aqui pegou o carro. O dr. Jeremias não era familiar
da casa do enfermo, embora entretivesse relações com ele; não podia ir
oferecer-lhe os seus préstimos. Tomé Gonçalves não tinha parentes que tomassem
a responsabilidade de convidar o médico, nem os credores podiam tomá-la a si.
Mudos, perplexos, consultaram-se com os olhos. Os do alfaiate, como os do
cabeleireiro, exprimiram este alvitre desesperado: cotizarem-se os credores, e,
mediante uma quantia grossa e apetitosa, convidarem o dr. Jeremias à cura;
talvez o interesse... Mas o ilustre mata viu o perigo de um tal propósito,
porque o doente podia não ficar bom, e a perda seria dobrada. Grande era a angústia;
tudo parecia perdido. O médico rolava entre os dedos a boceta de rapé,
esperando que eles se fossem embora, não impaciente, mas risonho. Foi então que
o mata, como um capitão dos grandes dias, viu o ponto fraco do inimigo;
advertiu que as suas primeiras palavras tinham comovido o médico, e tornou às
lágrimas das famílias, aos filhos sem pão, porque eles não eram senão uns
tristes oficiais de ofício ou mercadores de pouca fazenda, ao passo que o Tomé
Gonçalves era rico. Sapatos, calções, capotes, xaropes, cabeleiras, tudo o que
lhes custava dinheiro, tempo e saúde... Saúde, sim, senhor; os calos de suas
mãos mostravam bem que o ofício era duro; e o alfaiate, seu amigo, que ali
estava presente, e que entisicava, às noites, à luz de uma candeia, zás-que-darás,
puxando a agulha...
Magnânimo
Jeremias! Não o deixou acabar; tinha os olhos úmidos de lágrimas. O acanho de
suas maneiras era compensado pelas expansões de um coração pio e humano. Pois,
sim; ia tentar o curativo, ia pôr a ciência ao serviço de uma causa justa.
Demais, a vantagem era também e principalmente do próprio Tomé Gonçalves, cuja
fama andava abocanhada, por um motivo em que ele tinha tanta culpa como o doido
que pratica uma iniqüidade. Naturalmente, a alegria dos deputados traduziu-se
em rapapés infindos e grandes louvores aos insignes merecimentos do médico.
Este cortou-lhes modestamente o discurso, convidando-os a almoçar, obséquio que
eles não aceitaram, mas agradeceram com palavras cordialíssimas. E, na rua,
quando ele já os não podia ouvir, não se fartavam de elogiar-lhe a ciência, a
bondade, a generosidade, a delicadeza, os modos tão simples! Tão naturais!
Desde esse dia
começou Tomé Gonçalves a notar a assiduidade do médico, e, não desejando outra
coisa, porque lhe queria muito, fez tudo o que lhe lembrou por atá-lo de vez
aos seus penates. O lapso do infeliz era completo; tanto a idéia de pagar, como
as idéias correlatas de credor, dívida, saldo, e outras tinham-se-lhe apagado
da memória, constituindo-lhe assim um largo furo no espírito. Temo que se me
argua de comparações extraordinárias, mas o abismo de Pascal é o que mais
prontamente vem ao bico da pena. Tomé Gonçalves tinha o abismo de Pascal, não
ao lado, mas dentro de si mesmo, e tão profundo que cabiam nele mais de
sessenta credores que se debatiam lá embaixo com o ranger de dentes da
Escritura. Urgia extrair todos esses infelizes e entulhar o buraco.
Jeremias fez crer
ao doente que andava abatido, e, para retemperá-lo, começou a aplicar-lhe a
droga. Não bastava a droga; era mister um tratamento subsidiário, porque a cura
operava-se de dois modos: — o modo geral e abstrato, restauração da idéia de
pagar, com todas as noções correlatas — era a parte confiada à droga; e o modo
particular e concreto, insinuação ou designação de uma certa dívida e de um
certo credor — era a parte do médico. Suponhamos que o credor escolhido era o
sapateiro. O médico levava o doente às lojas de sapatos, para assistir à compra
e venda da mercadoria, e ver uma e muitas vezes a ação de pagar; falava de fabricação
e venda dos sapatos no resto do mundo, cotejava os preços do calçado naquele
ano de 1768 com o que tinha trinta ou quarenta anos antes; fazia com que o
sapateiro fosse dez, vinte vezes à casa de Tomé Gonçalves levar a conta e pedir
o dinheiro, e cem outros estratagemas. Assim com o alfaiate, o cabeleireiro, o
segeiro, o boticário, um a um, levando mais tempo os primeiros, pela razão
natural de estar a doença mais arraigada, e lucrando os últimos com o trabalho
anterior, donde lhes vinha a compensação da demora.
Tudo foi pago. Não
se descreve a alegria dos credores, não se transcrevem as bênçãos com que eles
encheram o nome do dr. Jeremias. Sim, senhor, é um grande homem, bradavam em
toda a parte. Parece coisa de feitiçaria, aventuravam as mulheres. Quanto ao
Tomé Gonçalves, pasmado de tantas dívidas velhas, não se fartava de elogiar a
longanimidade dos credores, censurando-os ao mesmo tempo pela acumulação.
— Agora,
dizia-lhes, não quero contas de mais de oito dias.
— Nós é que lhe
marcaremos o tempo, respondiam generosamente os credores.
Restava,
entretanto, um credor. Esse era o mais recente, o próprio dr. Jeremias, pelos
honorários daquele serviço relevante. Mas, ai dele! a modéstia atou-lhe a
língua. Tão expansivo era de coração, como acanhado de maneiras; e planeou
três, cinco investidas, sem chegar a executar nada. E aliás era fácil; bastava
insinuar-lhe a dívida pelo método usado em relação à dos outros; mas seria
bonito? perguntava a si mesmo; seria decente? etc., etc. E esperava, ia
esperando. Para não parecer que se lhe metia à cara, entrou a rarear as
visitas; mas o Tomé Gonçalves ia ao casebre da Rua do Piolho, e trazia-o a
jantar, a cear, a falar de coisas estrangeiras, em que era muito curioso. Nada
de pagar. Jeremias chegou a imaginar que os credores... Mas os credores, ainda
quando pudesse passar-lhes pela cabeça a idéia de ir lembrar a dívida, não
chegariam a fazê-lo, porque a supunham paga antes de todas. Era o que diziam
uns aos outros, entre muitas fórmulas da sabedoria popular: — Mateus, primeiro
os teus — A boa justiça começa por casa — Quem é tolo pede a Deus que o mate,
etc. Tudo falso; a verdade é que o Tomé Gonçalves, no dia em que falecera,
tinha um só credor no mundo: — o dr. Jeremias.
Este, nos fins do
século, chegara à canonização. — “Adeus, grande homem!” dizia-lhe o mata,
ex-sapateiro, em 1798, de dentro da sege, que o levava à missa dos carmelitas.
E o outro, curvo de velhice, melancolicamente, olhando para os bicos dos pés: —
Grande homem, mas pobre-diabo.
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